Conhecendo os ecossistemas aquáticos locais para conservá-los - uma experiência na educação básica
- Vanessa Schweitzer dos Santos
- 29 de nov. de 2020
- 9 min de leitura
Em comemoração ao Dia do Professor, em outubro de 2020 foi publicado o terceiro volume da Revista Saberes em Foco, a revista da Secretaria de Educação de Novo Hamburgo/RS, onde sou professora. Tive a oportunidade de contribuir com um relato de experiência, nesta edição, em parceria com as colegas Fabiane Patrícia de Melo e Eloise Riegel Buss, do Centro de Educação Ambiental Ernest Sarlet. O artigo Condições Ambientais de Arroios de Novo Hamburgo: Adaptação do Protocolo de Avaliação Rápida para uma Abordagem na Educação Básica apresenta uma proposta de atividade prática que estuda a realidade local dos estudantes, ilustrando diversos objetos do conhecimento e promovendo o desenvolvimento de diferentes habilidades, a partir da observação orientada de um ecossistema aquático.
Figura 1: Revista Saberes em Foco, volume 3, lançada em outubro/2020. Fonte: a autora.
Na imagem e também no texto acima ficou o link para acesso direto ao artigo, e também à revista completa. Nesta edição tem muitos relatos e reflexões importantes para as práticas educativas - fica como sugestão de leitura! O relato feito neste volume, sobre a adaptação do Protocolo de Avaliação Rápida (PAR) para a educação básica, traz uma revisão bibliográfica sobre o PAR e sua aplicação (que é muito dinâmica), além da importância de estudar e conhecer os ecossistemas aquáticos locais (rios, arroios, áreas úmidas, entre outros), como elemento disparador de ações de cuidado ambiental. Como conservar o que se desconhece?
A adaptação do PAR relatada ocorreu em 2019, por meio da necessidade de uma escola da rede municipal, onde uma turma de segundo ano do Ensino Fundamental vinha pesquisando os corpos hídricos da cidade. Eu já havia trabalhado com o Protocolo em uma disciplina cursada no doutorado em Qualidade Ambiental, da Universidade Feevale. Durante o período em que lecionei na Escola Municipal de Ensino Fundamental Boa Saúde, também em Novo Hamburgo/RS, já havíamos aplicado o PAR adaptado à turmas do sexto ano do Ensino Fundamental, em 2016. A iniciativa mostrou-se uma boa ferramenta para atividades práticas, fortemente relacionada à realidade local, permitindo que se abordem diferentes objetos do conhecimento, desenvolvendo assim algumas habilidades, especialmente as previstas nas unidades temáticas do componente curricular Ciências da Natureza.
Como no artigo da Revista Saberes em Foco o relato da atividade realizada no Centro de Educação Ambiental Ernest Sarlet está disponibilizado na íntegra, o objetivo do presente texto é refletir sobre a importância de atividades práticas e experimentais, como estas, estarem presentes no cotidiano escolar. Para o cuidado ambiental, conhecer é fundamental - partindo desse princípio, acredito que todo estudante tem direito à oportunidade de conhecer o ecossistema do qual faz parte, mesmo que este esteja bastante fragmentado e alterado por ações antrópicas. Abordar algumas questões ecológicas torna-se um tanto abstrato se não saímos do plano teórico.
A transposição didática em si é um desafio para os educadores - o conhecimento acadêmico por vezes se mostra abstrato, com uma linguagem inadequada ou não acessível à educação básica. Essa, por sua vez, carece do aprofundamento teórico e da atualização do conhecimento desenvolvidos no âmbito das universidades. Essa transposição ocorre a partir da intencionalidade pedagógica do professor, no planejamento das suas atividades. Cada adequação é única, conforme realidade escolar, da turma e também de cada estudante. Importante ainda registrar que a transposição didática vai muito além da redução do tempo de atividade, do aprofundamento teórico ou da adaptação da linguagem na abordagem dos objetos do conhecimento, e se consolida (especialmente na área ambiental) por meio de experiências que permitam ao estudante a vivência prática do que é abordado de maneira teórica. O PAR adaptado à educação básica é uma ferramenta interessante, nesse sentido, pois “proporciona a vivência prática de conceitos trabalhados teoricamente, especialmente aqueles associados à dinâmica dos recursos hídricos e sua conservação” (SANTOS; BUSS; MELO, 2020).
É perceptível a falta de senso de pertencimento nas relações ecológicas, por parte da sociedade, o que faz com que se desvalorize (ou que não se perceba) a importância da conservação ambiental. O afastamento observado, atualmente, entre os elementos naturais e o nosso cotidiano, sobretudo no contexto urbano em que a maioria de nós vive não justifica, mas explica a despreocupação com as questões ambientais: Conservar é para “lá” - distante do nosso dia a dia agitado nas cidades - práticas para alguns grupos de pessoas, os outros.
O PAR adaptado é uma possibilidade de reconhecimento das características ambientais e de elementos da fauna, flora e ecologia como um todo dos ecossistemas aquáticos locais. Muitos deles, inclusive são direta ou indiretamente fonte de abastecimento local para as companhias de saneamento. Em outras palavras: água que a gente bebe. Geralmente as crianças e os adolescentes ficam muito espantados quando compreendem que aquela mesma água que passa pelo corpo hídrico do seu bairro vai inevitavelmente abastecer a companhia municipal de saneamento e chegar às suas torneiras, tratada, obviamente.
Sugiro como leitura esclarecedora sobre o Protocolo original o artigo Aplicação de um protocolo de avaliação rápida da diversidade de habitats em atividades de ensino e pesquisa (MG-RJ) (CALLISTO et al., 2002), no qual encontram-se os parâmetros básicos que foram adaptados para as duas experiências com a Educação Básica (na EMEF Boa Saúde e no Centro de Educação Ambiental Ernest Sarlet). Basicamente, o Protocolo propõe uma série de 32 parâmetros a serem verificados no corpo hídrico e em seu entorno, apresentando um gradiente/pontuação para os diferentes resultados - somados à informações gerais da coleta, como temperatura ambiente e situação climática do dia.
Ao final da análise, a soma dessa pontuação indica o estado de conservação do corpo hídrico pesquisado. Sendo aplicada em diferentes trechos de um mesmo corpo hídrico, podemos acompanhar sua qualidade ambiental de maneira mais completa do que com análises pontuais ou isoladas. O PAR não substitui análises técnicas de qualidade da água (como as físico/químicas), ou outras metodologias consolidadas de levantamento de espécies ou verificação de macroinvertebrados como bioindicadores, composição do solo ou qualidade do ar, por exemplo. A proposta é justamente uma metodologia de fácil compreensão e aplicabilidade, que possa envolver a comunidade local na conservação ambiental.
Conhecer o Protocolo e sua dinâmica é fundamental para adaptá-lo adequadamente à turma/realidade em que será utilizado. No próprio artigo da Revista Saberes em Foco há uma revisão bibliográfica explicativa, de diversos artigos científicos que apresentam o aproveitamento do PAR para atividades que não sejam, exclusivamente técnicas/acadêmicas. Para quem quiser se aprofundar sobre o assunto vale a pena ler estes materiais. Nas experiências com a educação básica, “a adaptação baseia-se nos aspectos práticos e visuais, de fácil entendimento” (SANTOS; BUSS; MELO, 2020). Inclusive porque os equipamentos necessários para sua realização são de fácil aquisição: fita métrica, termômetro, vidraria para coleta e observação de amostras - tudo pode ser adaptado. Luvas para quem for manipular a coleta de água são recomendadas.
Vale lembrar que cada atividade deve considerar a idade/etapa de ensino dos estudantes, ainda que “a aplicação pode ocorrer com diferentes agentes de verificação, não sendo obrigatória formação mínima destas pessoas, desde que as mesmas compreendam os indicadores e sua pontuação” (SANTOS; BUSS; MELO, 2020). Assim, nas adaptações realizadas com estudantes do sexto ano alguns parâmetros mais complexos puderam ser abordados, em relação à atividade com o segundo ano.
Quando realizei a aplicação do PAR na EMEF Boa Saúde, o arroio do bairro que dá nome à escola era desconhecido pela maioria dos estudantes. Na realidade o arroio Cerquinha é um corpo d'água de pequeno porte, bastante alterado, inclusive canalizado em diferentes pontos, o qual atravessa praticamente todo o bairro e desemboca no Rio dos Sinos. Por ser canalizado e coberto por ruas asfaltadas (Figura 2), em determinados trechos, é inclusive chamado por muitos moradores de “valo”, ou “valão”. Não se reconhece mais o arroio como um ecossistema aquático, fonte de água e vida.
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Figura 2: arroio Cerquinha, no bairro Boa Saúde, em Novo Hamburgo/RS. Visão da parte baixa da rua, que segue sobre a ponte. Fonte: a autora.
De fato o arroio Cerquinha é muito degradado, por diferentes impactos de origem humana: a fragmentação do hábitat em si no seu entorno, a ocupação desordenada do bairro e, especialmente, pela poluição propriamente dita, seja por resíduos sólidos ou pelo lançamento direto de esgoto sem tratamento em seu leito (Figuras 3 e 4). A partir da visita de estudos e da utilização do PAR no arroio muitos temas socioambientais podem ser aprofundados em sala de aula.


Figuras 3 e 4: degradação ambiental no entorno e no leito do arroio Cerquinha. Fonte: a autora.
É importante que fique claro aos estudantes que a saída de estudos para a aplicação do PAR tem um objetivo/planejamento. Logicamente, cabe flexibilizar o tempo da atividade, proporcionando um tempo livre para a observação/contemplação descompromissada da área. Do mesmo modo, é preciso atentar para que o reconhecimento dos impactos ambientais observados não se torne o ponto mais importante da visita. Tenho um certo receio de promover a educação ambiental por meio da supervalorização da degradação ambiental. Cuidado para que a mensagem deixada não seja de que tudo está perdido!!
Assim como é necessário conhecer o PAR previamente, a testagem do método é fundamental - os estudantes precisam conhecer os parâmetros de verificação e compreendê-los. Quanto mais compreensão da proposta da atividade prática, acredito, mais envolvimento por parte dos estudantes. Previamente, em relação à experiência com os sextos anos, estudamos com aprofundamento as dinâmicas dos corpos hídricos, seu papel ecológico enquanto abrigo da biota, fonte de recursos, regulação do clima, entre outros aspectos. Deste modo, esses conceitos já eram conhecidos dos estudantes durante a visita.
Observando os parâmetros de verificação para a realização do PAR em ecossistemas aquáticos (encontrados no artigo de CALLISTO, 2002), podemos concluir que uma atividade como esta permite a abordagem de diferentes componentes curriculares em seu desdobramento, para além das Ciências da Natureza ou Biologia. Como por exemplo, a matemática, a geografia e a própria interpretação textual e escrita, na divulgação dos resultados do trabalho.
Por questões de segurança física e inclusive sanitária, sugiro que os professores façam visitas prévias de reconhecimento da área, especialmente se esta for, em algum trecho do corpo hídrico, rodeada por vegetação mais fechada. Se possível, cabe solicitar acompanhamento de mais adultos (outros professores, guarda, pais) durante a atividade.
Na experiência de aplicação do PAR na EMEF Boa Saúde percorremos diferentes pontos do arroio Cerquinha, com ênfase em sua nascente, uma área mais afastada das casas, com alguma vegetação representativa em seu entorno. A maioria dos estudantes desconhecia o fato de que naquele “mato” havia uma nascente (Figura 5). A nascente em si constitui-se de diferentes pontos próximos, de onde vertem as águas que em seguida iniciam a formação do arroio.

Figura 5: entrada da área das nascentes visitadas nas saídas de estudo. Fonte: a autora.
Como se percebe nas imagens, há um contraste muito expressivo desta área com o arroio em seu percurso, ao longo do bairro, onde o mesmo perde toda característica de ecossistema aquático e recebe muitas fontes de poluição. Observamos, nessas saídas de estudos, espécies nativas da região e algumas exóticas, tanto da fauna quanto da vegetação. Uma árvore que chama a atenção dos estudantes pelo tamanho é a figueira (Figura 6). No caminho até a nascente do arroio encontramos uma coruja buraqueira (Figura 7) - a área, como já citado, é ligeiramente afastada da zona mais populosa do bairro.

Figura 6: figueira encontrada durante a atividade prática. Fonte: a autora.

Figura 7: coruja buraqueira avistada na saída de estudos. Fonte: a autora.
A dinâmica das vertentes/nascentes foi o trecho que mais chamou a atenção dos estudantes na visita. O local de onde verte maior volume de água fica logo abaixo de algumas pedras e galhos maiores, próximo a uma pitangueira (Figura 8). Encontramos peixinhos nesse trecho do arroio. Observá-los foi uma surpresa especial para os estudantes - registrada na Figura 9! Após observá-los, devolvemos os mesmos ao leito do arroio.

Figura 8: nascente principal do arroio Cerquinha. Fonte: a autora.

Figura 9: peixinhos encontrados na nascente principal do arroio Cerquinha. Fonte: a autora.
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